Ana Elísia da Costa
Professora Universidade de Caxias do Sul – RS – Brasil
Doutoranda Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PROPAR
ana_elisia_costa@hotmail.com
Terezinha Buchebuan
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - RS - Brasil
terebuchebuan@hotmail.com
RESUMO
O artigo é uma investigação sobre tipologia industrial e têm como objeto de estudo os
edifícios da Metalúrgica Eberle. Trata-se de um complexo fabril construído entre o fim
do século XIX e a década de 1950, em Caxias do Sul, um importante centro industrial
no sul do Brasil. O conjunto, tido como referência arquitetônica para a cidade, está há
décadas abandonado e recentemente foi locado para a implantação de uma
Universidade. Diante da proposta de refuncionalização, o estudo sobre a evolução
cronológica e tipológica do complexo poderá subsidiar futuras propostas de
intervenção. A abordagem se desenvolve cronologicamente, localizando a construção
das fábricas e relacionando-as com similares do mesmo período, de modo a permitir a
identificação de esquemas tipológicos recorrentes ou excepcionais. Inicialmente,
destaca os primitivos edifícios em madeira e a substituição gradativa por edificações
em tijolos. Ressalta o papel de vanguarda na arquitetura local do edifício novo junto à
rua Os 18 do Forte, na década de 30. Apesar da composição volumétrica se relacionar
com as soluções recorrentes no período, a predominância do vazio sobre o cheio e o
emprego da estrutura modulada de concreto armado antecipam soluções só adotadas
posteriormente. O edifício-ícone da empresa é construído nas décadas de 40 e 50,
junto à rua Sinimbú. Trata-se de uma longa barra horizontal contraposta por uma torre
simétrica, cuja linguagem Art Déco procura traduzir a “modernidade” da empresa. Pelo
seu porte, localização e desempenho sócio-econômico, o edifício é um marco urbano
de grande relevância. Isoladamente ou em conjunto e em diversos graus, as obras do
complexo fabril criaram condições para o avanço da linguagem arquitetônica e da
tecnologia construtiva no contexto da cidade. É o diagnóstico feito a partir deste
estudo que permitirá definir critérios de substituição e permanência das partes que
compõem o conjunto.
A Metalúrgica Eberle nasceu em Caxias do Sul, uma cidade na região nordeste do
Estado do Rio Grande do Sul, marcada pelo processo de colonização italiana. Para
essa região, entre agricultores, vieram também “colonos industriosos”, que se
instalaram na área urbana da Colônia. Inicialmente, se dedicaram ao comércio, cujos
lucros, gradativamente, impulsionaram as atividades industriais. Entre as indústrias
mais expressivas, logo se destacaram a têxtil, a alimentícia e a metal-metalúrgica. No que se refere à consolidação da indústria metal-metalúrgica, há de se considerar o fato
de que a região não dispõe de matéria-prima, nem em suas proximidades. Por sua
vez, o acesso a esse material enfrentou inúmeras dificuldades de transporte, dada à
região de relevo acidentado em que se encontra o município.
Neste contexto, destaca-se a Metalúrgica Eberle. Trata-se de um complexo fabril
construído entre o fim do século XIX e a década de 1950, envolvendo sucessivas
construções, substituições e consolidações, o que resultou em um complexo
fragmentado e de difícil compreensão.
Por ocupar quase toda uma quadra ao lado da praça principal de Caxias do Sul e pelo
seu papel social e econômico, a metalúrgica se transformou em um marco urbano ao
longo da sua história. Especialmente a fábrica construída na década de 1940 merece
menção, ao ser citada como a “mais moderna e mais ampla” ou “pequeno arranha-céu
caxiense.” (Antunes, 1950, p. 240)
Contudo, há décadas o conjunto vem sofrendo com o abandono de seu uso
original. Inúmeros são os problemas de deterioração, por falta de manutenção. E,
mais recentemente, surgem ameaças de descaracterização, uma vez que o
complexo vem absorvendo novos usos, como um estacionamento de veículos e
uma Universidade.
Considera-se que a refuncionalização represente uma medida inevitável para garantir
a sobrevivência física e simbólica do patrimônio. Contudo, por falta de clareza sobre
as especificidades do complexo, intervenções pontuais podem vir a prejudicar o
desempenho do conjunto, descaracterizando-o de modo irreversível.
Assim, este artigo tem por objetivo traçar uma evolução tipológica da Metalúrgica
Eberle, na esperança de que tais dados possam subsidiar futuras propostas de
intervenção. É o diagnóstico feito a partir deste estudo que permitirá definir critérios de
substituição e permanência das partes que compõem o conjunto.
Para alcançar tais objetivos, as sucessivas construções, substituições e consolidações
são abordadas cronologicamente. Três grandes períodos são identificados: (1) de
1884 a 1930, período de transição dos primitivos edifícios em madeira para as
singelas edificações em alvenaria; (2) década de 1930, com o papel de vanguarda do
edifício construído junto à rua Os 18 do Forte; (3) décadas de 1940 e 1950, com a
construção do edifício-ícone da empresa.
Em cada um desses períodos é feita uma contextualização arquitetônica e urbanística,
identificando esquemas tipológicos - formais, funcionais e tecnológicos - recorrentes1.
Na seqüência, são analisados os edifícios da Metalúrgica, o que permite, por comparação a similares, identificar o quanto são excepcionais ou recorrentes.
Na seqüência, são analisados os edifícios da Metalúrgica, o que permite, por comparação a similares, identificar o quanto são excepcionais ou recorrentes.
Por fim, é possível concluir que, isoladamente ou em conjunto e em diversos graus, as
obras do complexo fabril da Eberle criaram condições para o avanço da linguagem
arquitetônica e da tecnologia construtiva no contexto da cidade de Caxias do Sul.
1 Conforme método sugerido por Argan (1984)
Breve história empresarial
A Eberle teve início em 1884, como uma pequena funilaria de propriedade de
Giuseppe e Luigia Eberle. Em 1896, Abramo Eberle, filho do casal, comprou a funilaria
e passou a fabricar lamparinas, máquinas de sulfatar, alambiques, funis, canecas,
baldes... (Franco e Ramos, 1946).
Com a ampliação do mercado interno decorrente da Primeira Guerra Mundial e com a
inauguração da estrada de ferro, a década de 1910 representou um grande
crescimento da empresa, passando a produzir, com seus 250 funcionários, artigos
para montaria, talheres, objetos domésticos e sacros, rebites e botões. A Segunda
Guerra e as dificuldades de importação de máquinas levaram a empresa a fabricar
seus primeiros motores elétricos e a forjar peças de aço para diversas outras
indústrias, sendo decretada empresa de interesse militar.
A partir daí, a empresa começou a implantar novos serviços, complementares às
atividades principais, como tipografia e transporte rodoviário. Investiu em viagens
internacionais de estudo de novas tecnologias e num setor de negócios, com a
montagem de escritórios em São Paulo e Rio de Janeiro e confecção de catálogos de
seus produtos. O intenso processo de desenvolvimento culmina na construção, em
1948, da segunda fábrica – a MAESA, na região leste da cidade.
Politicamente, a empresa mantém estreito relacionamento com a comunidade
caxiense, participando e promovendo eventos locais. Com os operários, manteve
relações de cunho paternalista nas áreas: financeira, fazendo empréstimos e
organizando cooperativas; cultural, promovendo cursos e criando grêmio atlético e
biblioteca; e saúde, oferece atendimento médico.
Na década de 1960, a Eberle se transforma em empresa de capital aberto e inicia a
construção do seu terceiro parque – São Ciro, com as divisões de motores elétricos,
componentes metálicos e mecânica de precisão. Contudo, a década de 1970
representa a descentralização do capital das mãos da família Eberle, o que acabou
por levar a venda da empresa, em 1985, quase um século depois de seu início (1884).
1. DOS PRIMITIVOS EDIFÍCIOS EM MADEIRA ÀS SINGELAS EDIFICAÇÕES EM ALVENARIA
1.1. Contexto de Inserção - 1884-1910
Os primeiros edifícios da Eberle são construídos no início da ocupação do território
pelos imigrantes. Neste contexto, o isolamento, a falta de recursos e o atendimento às
necessidades primárias de subsistência condicionaram o surgimento de rudimentares
e compactos edifícios, que buscavam atender apenas às questões funcionais. Eram
também edifícios estreitos, condicionados pela necessidade de garantir a iluminação
natural lateral nos ambientes, uma vez que não existia energia elétrica. Essa relação
da largura da edificação, por sua vez, condicionou a necessidade de verticalização,
resultando assim em edificações de um a dois andares, compactas e estreitas.
Tecnologicamente, observa-se que a madeira era abundante na região, tornando o
seu uso mais prático e mais barato. Assim, foram construídos inúmeros edifícios
rústicos, estruturados e vedados em madeira. As fundações eram configuradas com o
prolongamento da estrutura vertical de madeira, apoiando-se em pequeno alicerce de
pedras, ou ainda, com paredes de pedra. As tábuas das paredes, no início, eram
fixadas verticalmente e arrematas por mata-juntas. Posteriormente, com as serrarias,
as tábuas passaram a ter medidas inglesas e encaixes tipo macho-fêmea. (Posenato,
1983) As coberturas eram geralmente de duas águas, com estrutura de madeira e
beirais curtos. Inicialmente, eram usadas telhas de tábuas lascadas – scándole
(Posenato, 1983 e Bertussi, 1987), sendo substituídas mais tarde por chapas de ferro
galvanizado ou telhas de barro.
As janelas eram simples tampões de abrir para fora ou tampões fixados nas vergas.
(Posenato, 1983) Mais tarde, observa-se a caixilharia e vidro (folhas de abrir internas ou
guilhotina), fechadas por tampões. As portas seguiam o mesmo sistema construtivo das
janelas, variando as dimensões, conforme os usos a que serviam. Nos casos em que
era necessário vencer grandes vãos, observa-se a presença de vergas em arcos
abatidos.
Esteticamente, prevalece a singeleza da arquitetura vernácula colonial italiana. A
composição compacta dos edifícios explora apenas a simetria, marcando o ritmo da
disposição das janelas, onde prevalecem cheios sobre vazios. Quando há mistura das
texturas dos elementos de vedação, estas geralmente marcam a escala da edificação
– porão em pedra e pavimento superior em madeira ou tijolo. Observa-se ainda a ausência de elementos ornamentais (torneados, entalhes e fresas), que eram comuns
nos edifícios residenciais e comerciais.
Normalmente, eram autoconstruções2, sem a “interferência em qualquer nível de
técnicos especializados” (Bertussi 1987, p. 127), determinando certa espontaneidade
nas soluções adotadas. Por outro lado, obedecem aos parâmetros configurativos e
compositivos impostos pelo Código de Posturas de Caxias do Sul3, de 1893.
Condicionados por essa lei, os edifícios seguem o alinhamento da rua, com altura de
4,00 metros no térreo e 3,80 e 3,55 metros, respectivamente para primeiro e segundo
pavimentos.
O primeiro edifício
A primeira edificação da Metalúrgica Abramo Eberle (figura 1a) não fugiu ao contexto e
ergueu-se como uma pequena obra de madeira, muito simples e rústica. Constituía-se
de um prisma retangular, com a menor largura possível para obter o melhor
aproveitamento da luz do dia. Hipoteticamente, seu comprimento é de 11,40 metros
(38 tábuas) e 4,00 metros de altura, conforme exigência legal.
A cobertura era em duas águas, já com telhas galvanizadas, com o escoamento
voltado para a via. As esquadrias eram do tipo guilhotina, com caixilharia e vidro, e
ainda, tampos internos.
A simetria das fachadas era marcada pelo ritmo da disposição das janelas,
prevalecendo os cheios sobre os vazios. Neste caso específico, observa-se uma
possível ampliação, marcada pela diferenciação das esquadrias e por um possível
fechamento de vão de porta, indicado pela marcação das tábuas, numa altura que
parece configurar uma escada de acesso ao pavilhão.4 (figura 1b)
2 Por autoconstruções entendem-se edificações elaboradas sem qualquer tipo de auxílio técnico, quer do ponto de vista da concepção, quer do ponto de vista da execução da obra.
3 CAXIAS DO SUL − Decreto n. 10, de 5 de março de 1893. Código de Posturas do Município de Santa Thereza de Caxias.
4 Há uma hipótese de que este volume tenha sido construído em duas etapas – três vãos em 1896 e dois vãos em 1901 (FRANCO e RAMOS, 1946)
1.2. Um contexto em transformação - 1910-1920
O contexto das simples edificações em madeira sofre uma significativa alteração a
partir de 1910, com o grande impulso da Primeira Guerra Mundial. Além disso, a
inauguração da estrada de ferro (1910) e a instalação da energia elétrica (1913)
desempenharam importante papel no contexto da cidade.
Tais fatos fizeram com que as características próprias da imigração italiana fossem
aculturadas. Diversos edifícios foram substituídos por edificações em alvenaria, com o
telhado frente-fundo, três ou quatro águas, arrematadas por platibandas, que
eliminavam os beirais. O “moderno” era traduzido através do gosto eclético, como nos
Bancos Pelotense e Província do Rio Grande do Sul, e através da arquitetura colonial
portuguesa, como no prédio da Intendência Municipal e no Hotel Colonial (Posenato,
1983 e Costa, 2001).
Apesar da permeabilidade à influência externa, as restrições a importações e as
condições econômicas vigentes condicionaram a manutenção da simplicidade
compositiva dos edifícios industriais, sendo que as grandes alterações na década
foram referentes aos programas de necessidades das empresas.
A diversificação da produção afetou o dimensionamento e o arranjo dos espaços.
Empresas, como Abramo Eberle e Amadeu Rossi, eram organizadas em diversas
seções: artigos de metal, selaria e courearia, ourivesaria e relojoaria, galvanização,
funilaria, fundição, depósitos. Os diversos setores produtivos eram acomodados em
ampliações, determinando composições aditivas, que ainda possuíam as
características dos rústicos galpões em madeira. (Costa, 2001)
A ampliação do primeiro edifício
Coerente com o cenário de transformações urbanas e econômicas, o primeiro pavilhão
da Eberle é ampliado com novas edificações (figura 2c), estando uma delas na
periferia da quadra5. Em dois andares, o edifício frontal mantém o mesmo sistema
tecnológico da edificação pré-existente – estrutura e vedação em madeira; cobertura
em duas águas, com telhas galvanizadas e beiral, agora, arrematado por calha;
aberturas em guilhotina e com tampão interno.
Compositivamente, a ampliação frontal é um prisma retangular, hipoteticamente, com
12,00 metros (40 tábuas) de comprimento, 4,00 metros de pé-direito no primeiro
pavimento e 3,80 m no segundo, conforme exigência do Código de Posturas. Busca
estabelecer o mesmo ritmo de cheios e vazios, porém não seguindo a mesma
modulação do edifício pré-existente. A simetria não é explorada, assim como é
rompida na edificação antiga, com a abertura de uma porta no vão de uma das janelas.
(figura 2d)
Hipoteticamente, ao longo da década de 10, houveram outras ampliações (figura 2a),
só que agora ocupando o meio da quadra, conforme cronologia apresentada pela
empresa. (FRANCO e RAMOS, 1946)
5 Há fontes (figuras 2a e 2b) que esta ampliação ocorreu entre 1900-1906 (CALDART, 2001 e FRANCO e RAMOS, 1946). Contudo, a datação hipotética aqui é definida por comparação com demais edifícios industriais do período (COSTA, 2001).
1.3. A tentativa de se modernizar - 1920-1930
Em 1920, define-se um novo Código de Posturas (6) que estabelece novos parâmetros
configurativos, compositivos e construtivos para os edifícios. Introduz afastamentos
frontal e de esquina, evitando arestas vivas nas mesmas. Estabelece novas regras para
altura e proporção da edificação, bem como de sacadas e balcões, não sendo mais
permitido beirais sobre o logradouro público. Além disso, apresenta discussões sobre
habitabilidade, através da aeração, iluminação e dimensionamento dos ambientes. No
entanto, as grandes mudanças dizem respeito à tecnologia construtiva, proibindo a
construção de edifícios de madeira em diversos setores da cidade.
Por estar proibido o uso da madeira, registra-se a substituição gradativa desse material
por pedra e tijolo nas paredes das indústrias. Quando ocorre o uso da pedra, se dá nas
fundações e se intensifica principalmente nos porões, resolvendo problemas estruturais
e de umidade. Isso determinou uma tipologia muito comum no período - edificações
mistas, com porão em pedra e pavimento superior em tijolo. Freqüentemente, os tijolos
eram rebocados, procurando oferecer internamente higiene e, externamente, proteção
contra intempéries. É o que se observa no Curtume Termignoni, na Cervejaria Indiana,
em parte da Cantina Pieruccini e ainda, no Lanifício Gianella.
Também se observam algumas alterações com relação às dimensões dos ambientes.
Agora, eram mais amplos para comportar grandes equipamentos importados, movidos à
energia elétrica. O uso da iluminação artificial, por sua vez, também flexibilizou estas
dimensões, uma vez que mantinha o edifício independente da iluminação natural lateral.
Culturalmente, a cidade começava a ganhar ares de urbanidade contemporânea. É
registrado o rebaixe da Praça Dante e de diversas outras ruas. Também ocorre a
inserção de edifícios de significativa expressão eclética, como: a Sociedade “Principe di
Napoli”, a casa do Bispado e as residências Germani e Sassi, muitos deles projetados
por arquitetos-construtores italianos, como Luigi G. Valiera e Sílvio Toigo. (Costa, 2001)
6 CAXIAS DO SUL. Ato n. 9, 7 de dez. de 1920. Código Administrativo do Município de Caxias do Sul (em vigor: 1o de janeiro de 1921).Primeiro edifício em alvenaria
Na Metalúrgica Eberle segue o processo de ampliação através da adição de novos
volumes, estendendo-se até a Rua “Os Dezoito do Forte” (figura 3a). Neste contexto,
destaca-se uma edificação construída no meio da quadra, em 1925. Apesar de
apresentar paredes e pilares em alvenaria, as tesouras e entre-pisos continuam
construídos em madeira. Observa-se ainda, o aumento no dimensionamento dos
espaços para comportar grandes equipamentos importados, o pé-direito alto e idêntico
entre os dois pavimentos e o provável uso de iluminação artificial.
Compositivamente, o prisma apresenta uma cuidadosa modulação das aberturas,
compondo o ritmo de cheios e vazios. O telhado de duas águas apresenta um curto
beiral, provavelmente arrematado por cimalha, apesar de não representada no projeto.
(figura 3b)
Provavelmente, no início deste período, também foi construída a casa da família
Eberle e de seus sócios. Observam-se volumes ainda em madeira, com cobertura em
duas águas, cujos oitões recebem ornamentação em lambrequim, distinguindo o
caráter destes edifícios dos demais de uso industrial. (figura 3c)
2. PAPEL DE VANGUARDA: EDIFÍCIO JUNTO À RUA OS 18 DO FORTE
2.1. Contexto da Simplificação – década de 1930
A década de 1930 é marcada pela inserção dos grandes edifícios de cooperativas na
paisagem urbana de Caxias do Sul. Esse processo inicia com a crise de 1929, quando
as diversas vinícolas e madeireiras tiveram que unir esforços para garantir as
condições de mercado. Entre 1929 e 1940 são fundadas dezesseis cooperativas no
município. (Frizzo, 1997, p. 123)
Em sua maioria, os edifícios das cooperativas, bem como dos demais edifícios
industriais da década de 30, apresentavam uma composição aditiva, com volumetria
simples e pesada, onde se observa a ornamentação simplificada e o jogo de cheios e
vazios de aberturas e/ou elementos verticais marcando pilares. As coberturas eram
expressivas, apresentando pontos elevados e beirais retos, arrematados por calhas.
São assim, por exemplo, as cantinas Aliança, Pezzi, Mosele e a Cooperativa São Vitor.
Tecnologicamente, o uso da madeira se limita à estrutura da cobertura. Os
elementos estruturais verticais são elaborados em tijolos e, em sua maioria, em
concreto armado. O uso da pedra se limita a baldrames e ao fechamento vertical
de cantinas e porões.
Essa composição é condicionada ainda pelo Código de Posturas de 1920, que
estabelece a altura dos vários pavimentos da edificação e a criação do terceiro plano
de fachada nas esquinas. Já a simplicidade da ornamentação não é uma imposição
legal, mas uma decisão de ordem estética, do “gosto” que se consolidava na época.
Observa-se que outros programas na cidade também vão apresentar características
semelhantes, como os Colégios Nossa Senhora do Carmo, São José, Duque de
Caxias e o Seminário Nossa Senhora Aparecida. Intensifica-se também a atuação
de profissionais para a elaboração de projetos arquitetônicos. Entre os de maior
projeção na época, está o construtor-licenciado Sílvio Toigo.
Abrindo paredes...
Merece destaque a ampliação da Metalúrgica Eberle, junto às Ruas Borges de Medeiros
e Os 18 do Forte. (figura 4b) Apesar da composição volumétrica se relacionar com as
soluções adotadas nos demais edifícios – volume pesado, com telhado marcante, o
tratamento volumétrico já antecipa o vocabulário que será adotado na próxima fase –
marcação horizontal das aberturas, prevalecendo o vazio sobre o cheio, ao gosto das
janelas contínuas. Também, do ponto de vista construtivo, o prédio introduz algumas
inovações no contexto caxiense, como o uso da estrutura modulada de concreto
armado. (figuras 4c e 4d)
Há indícios de que tais inovações tenham sido introduzidas pela empresa paulista
Matarazzo e Pilon Ltda., responsável pelo projeto em 1935, sendo posteriormente
trabalhado e executado por Sílvio Toigo, que assume a autoria do projeto.
É relevante observar que neste período a empresa começa a ocupar lotes de quadras
adjacentes, dada à diversificação das atividades da empresa. (figura 4a)
3. O EDIFÍCIO-ÍCONE DA EMPRESA
3.1. A modernidade ou quase ela... – décadas de 1940 e 1950
Nesse contexto, importa localizar o que a década de 1930 representou para o
Brasil e conseqüentemente para Caxias do Sul. No âmbito nacional, foi a década
de lançamento da política de modernização de Getúlio Vargas. No âmbito
municipal, observa-se a intensa urbanização, com a cidade crescendo além dos
limites estabelecidos pelo plano original e com o calçamento das avenidas
principais.
A arquitetura buscava corresponder essa modernidade, simplificando sua
linguagem e racionalizando sua técnica construtiva, mesmo sem ter clareza à qual
modernidade deveria corresponder (Segawa, 1995). No final da década de 30 e ao
longo da década de 40, o Art Déco é adotado como tradutor dessa modernidade,
capaz de exprimir idéias novas em Caxias do Sul, assim como em boa parte do Brasil.
Suas linhas geométricas são adotadas em diversos edifícios educacionais, culturais,
bancários, comerciais, residenciais e ainda, em monumentos urbanos, como o do
Imigrante, de 1954.
Naturalmente, esse contexto de modernidade irá influenciar a produção dos novos
edifícios industriais. Volumes geometrizados, associados a superfícies curvas, para
conferir certo aerodinamismo de gosto expressionista, vão surgir no espaço
urbano. A simetria das fachadas é explorada ao máximo, marcada pelo acesso
principal e pelo escalonamento da platibanda que arremata a cobertura. Na
ordenação das fachadas, a disposição de janelas verticalizadas, a maioria do tipo
vitrô basculante de ferro, estabelece um ritmo de cheios e vazios. Esse mesmo
ritmo ainda é buscado pela ornamentação em baixo e alto-relevos, geralmente
marcando os elementos horizontais e verticais da estrutura da edificação. A
marcação da base-corpo-coroamento é muito comum, através do emprego de
molduras, cores e texturas. No entanto, de modo geral, a unidade é alcançada
através de composições monocromáticas, resultantes de paredes rebocadas e
pintadas ou paredes revestidas com pó de mica. (Conde e Almada, 1997)
Normalmente, as paredes eram erguidas em alvenaria e estruturadas em concreto.
A modulação da estrutura em concreto vai garantir a planta livre, em atendimento
às exigências dos programas fabris. Nas fundações, das sapatas de concreto
armado, observa-se a permanência do uso de pedras basalto. Seu emprego
também será observado como elemento estético da fachada, demonstrando a
mescla de técnicas construtivas modernas e tradicionais.
Outra importante característica desse período é a adoção de uma política social
por parte das empresas, sendo necessário investigar os seus rebatimentos sobre o
programa de necessidades espaciais das fábricas. De maneira geral, se observa
que a assistência das empresas aos operários ocorria fora dos limites da fábrica,
não sendo dimensionados espaços no conjunto fabril para esse fim. A Eberle, no
entanto, incluía em seu programa um ambulatório bem montado, restaurante,
biblioteca, sala de leitura e sala de aula.
O edifício atual
Erguido em substituição aos antigos edifícios em madeira do início do século e da
residência da família (figura 5), o edifício voltado para a Rua Sinimbu foi construído na
década de 1940, sendo considerado marco na arquitetura caxiense (Schumacher,
Costa e Barella, 2004).
Projetos disponíveis no Arquivo Histórico Municipal indicam que o projeto foi
desenvolvido por um engenheiro-arquiteto de Porto Alegre. No entanto, a proposta
original foi retrabalhada por Silvio Toigo em 1942, que assumiu a autoria do projeto
dando-lhe uma roupagem Art Déco. No projeto, a volumetria é simples − um
paralelepípedo, com a marcação da base, através de uma marquise, do corpo e do
coroamento, através da platibanda. Na ordenação da fachada, observa-se a
marcação, em alto-relevo e através da altura da platibanda, do acesso principal e dos
dois acessos laterais, localizados nos dois extremos do edifício. A simetria do conjunto
é reforçada pela disposição rítmica das janelas marcadas horizontalmente, sendo
contraposta pela marcação vertical das aberturas nas saliências laterais e central. A
presença de um relógio sobre a saliência central e a dos outros dois objetos nas
saliências laterais destaca-se como ornamentos no conjunto. (figuras 6b e 6c)
Essa fachada também não foi executada, contudo sua lógica compositiva permaneceu
a mesma numa terceira proposta, sendo apenas ressaltada a simetria do conjunto e o
contraste entre as linhas verticais e horizontais. (figura 6d) Nota-se o acréscimo de um
andar nas saliências laterais e central e ainda uma torre com relógio, provavelmente
inspirada na torre do relógio do edifício da Central do Brasil do Rio de Janeiro (1937).
A composição das aberturas permanece a mesma, exceto as grandes janelas verticais
das saliências laterais que são substituídas por janelas padronizadas. Bem ao gosto
Art Déco, o revestimento da base do edifício com granito preto e o trabalho metálico
nas portas de acesso conferem nobreza ao prédio.
O edifício foi edificado em etapas, na década de 40, foi construída apenas a metade,
definida pelo seu eixo de simetria e sem a torre. (figura 6f) Em 1957, já se registra a
fachada concluída. Posteriormente, percebe-se que foi construído um sexto pavimento
em toda a extensão da edificação, perdendo muito o contraste entre a horizontalidade
e a verticalidade. Além disso, na construção do sexto pavimento não foi usada a
mesma composição de aberturas, em prejuízo à unidade do conjunto. (figuras 6e e 6g)
Observa-se que a simetria da fachada não corresponde a uma simetria na disposição
dos ambientes nas plantas, contudo há uma subordinação dos arranjos funcionais à
modulação da grelha estrutural. O dimensionamento dos ambientes segue o esqueleto estrutural em concreto armado, modulado longitudinalmente através de vigas
dispostas de 2 em 2m e pilares de 4 em 4 m. No sentido transversal, a modulação dos
pilares é de 5,5 em 5,5 m. (figura 6c)
Esse edifício, acrescido dos edifícios da Rua Borges de Medeiros e Os 18 do Forte,
construídos na década de 30, ocupam quase uma quadra inteira na área central de
Caxias do Sul, ao lado da praça principal. Deve-se considerar ainda que, no interior da
quadra, também existem outras edificações que abrigavam a diversificada produção,
abrangendo mais de 15.000 artigos diferentes.
CONCLUSÃO
O abandono de grandes estruturas industriais nas áreas urbanas centrais das cidades
tem sido tema de vários debates. A cidade, como organismo vivo e dinâmico, não
comporta o ônus da falta de uso destas edificações. No entanto, há que se ter cuidado
para garantir que bens, considerados patrimoniais, não se tornem vítimas de
indiscriminada e acelerada especulação.
Neste contexto, inicialmente, parece ser importante discutir critérios para a atribuição
de valor patrimonial aos edifícios industriais, indo além de suas características
arquitetônicas específicas. Torna-se necessário “(...) olhar as relações antropológicas
de apropriação destes bens no espaço e no tempo, para identificar seu valor”. (VILLAC
apud CHOAY 2006). Este olhar sobre as relações com os artefatos construídos poderá
também atribuir o valor patrimonial de um bem, estando diretamente relacionado com
a ligação afetiva da população com os mesmos. Assim, mais do que preservar os
edifícios, é importante também garantir a manutenção dos “símbolos” das cidades, nos
quais a comunidade reconhece sua identidade.
A Metalúrgica Eberle, no contexto caxiense, é certamente reconhecida como imagem
simbólica da identidade da cidade de Caxias do Sul. A análise da evolução tipológica
dos edifícios pode evidenciar o importante papel que ela desempenhou, tanto
economicamente quanto socialmente, na formação e na afirmação identitária do
imigrante italiano. A empresa representou a ascensão destes imigrantes, sendo a sua
arquitetura capaz de refletir materialmente o processo econômico e social de
ocupação e industrialização da cidade, através da evolução das técnicas construtivas,
da linguagem estética adotada em cada período, além dos constantes avanços nos
programas de necessidades.
Diante disto, considera-se que o conjunto pode efetivamente ser considerado de valor
patrimonial para Caxias do Sul, como confere o próprio processo de tombamento público municipal, exigindo cuidados em qualquer proposta de refuncionalização. Aqui,
explicita-se que a refuncionalização, dado ao porte do complexo, poderá garantir a
própria sobrevivência física e simbólica deste patrimônio. Contudo, para garantir que
este processo de absorção de novos usos não descaracterize o conjunto, será
importante priorizar as intervenções em edifícios marcos desta evolução.
Das sucessivas construções e substituições, o resultado foi um complexo fabril
fragmentado e de difícil compreensão. Em vários dos edifícios de meio de quadra, não
foi possível precisar a data de construção. No entanto, três principais edifícios desta
evolução permanecem ao longo do tempo.
O primeiro é uma edificação construída em 1925, por ser um marco substituição dos
edifícios primitivos em madeira por uma edificação em alvenaria, mantendo as
tesouras e entre pisos em madeira. Retrata a mudança ocorrida no contexto caxiense,
por imposição Código de Posturas de 1920.
Já a segunda edificação, foi considerada de vanguarda no contexto da cidade, não
pela composição volumétrica, mas pelo sistema construtivo – com o uso de estrutura
modulada de concreto armado, possibilitando a marcação horizontal das aberturas,
com o predomínio do vazio sobre o cheio.
Por fim, o edifício ícone foi construído para substituir todas as edificações em madeira.
Foi considerado um marco na arquitetura caxiense, por antecipar a “modernidade”
como um “pequeno arranha-céu”. Tem destaque a torre central que abriga um relógio,
cujas badaladas tornou-se um marco na história da cidade.
As duas últimas edificações são reconhecidas como símbolos pela população, caráter
este reforçado certamente pela relação direta das mesmas com o espaço público, ao
passo que as edificações constantes no interior da quadra podem não estar presentes
no ideário coletivo. Para que permaneçam assim, é imprescindível que a discussão
sobre a refuncionalização não se limite ao valor econômico e ao valor de uso,
assegurando que este patrimônio permaneça como representante de parte da
memória histórica e cultural da cidade, quase sempre relegada a um segundo plano.
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