Terezinha
Buchebuan*
Quando
escuto a palavra Eberle, a primeira imagem que me vem à mente é a das antigas
vitrines. São memórias de infância. Sim, sou do tempo em que as vitrines da
Eberle eram atração no centro de Caxias! O que me encantava? Certamente a
diversidade, era um universo de informações e produtos para quem estava
começando a descobrir o mundo. Lembro das incursões, em família, pelo centro da
cidade: colocar a melhor roupa, ir para a missa na Catedral, brincar e correr
com meus irmãos pela praça, enquanto meus pais sentados nos cuidavam. Próximo
da hora de ir embora, comer pipocas, dois saquinhos para dividir em três
crianças, atos e lições simples que nos uniram e nos ensinaram grandes valores.
No
caminho para pegar o transporte coletivo, antigo Expresso Caxiense – o
“transporte carinhoso”, tínhamos que passar em frente às vitrines da Eberle.
Era um mundo à parte, quase incompreensível e inatingível para mim: os motores
muito complicados; os artigos sacros que evocavam respeito; os artigos de
montaria e as facas com lindos desenhos de cabeças de cavalo; os talheres que
brilhavam tanto e eram tão chiques, expostos em caixas de madeira com veludo
vermelho; os botões que víamos em nossas roupas e podíamos ler a marca Eberle
por trás (pelo menos uma coisa da empresa a gente tinha); e o prédio, esse sim,
aos olhos da criança se mostrava grandioso. Não bastasse isso, as vitrines eram
concebidas com zelo e não se resumiam a um amontoado de produtos. A sequência,
que se apresentava quase como quadros conforme se caminhava pelas calçadas com
desenhos de engrenagem, iam dos motores aos artigos de prata como num ápice.
Muitos
anos mais tarde, depois de ter me tornado arquiteta, tive o prazer de conhecer
a Eberle, desta vez por dentro. A prof. Ana Elísia da Costa e eu, integrantes
da equipe da arq. Sandra Favaro Barella, fomos incumbidas de estudar a evolução
cronológica e tipológica das edificações com vistas a subsidiar o projeto de
refuncionalização para implantação de uma instituição de ensino. Sim, foi um
momento lindo. Inclusive vimos a réplica da primeira edificação bem de pertinho
e revelo: ela é muito pequena! No entanto, o estado de degradação das
edificações trouxe apreensões: as coberturas com muitas infiltrações, as
madeiras apodrecendo, os ricos escritórios destruídos, enfim, uma lástima.
O
estudo acabou resultando num artigo[1]
que destacou, além da evolução das
edificações ao longo do tempo, a importância que elas tiveram como vanguarda, transformando-se
em referência arquitetônica e traduzindo as aspirações de modernidade da
empresa e da cidade.
Na conclusão deste estudo foi registrado o abandono
das estruturas industriais nos centros urbanos, destacando-se que as cidades
não comportam o ônus da falta de uso desses espaços, mas não podem prescindir
de seu valor patrimonial, que estão além de suas características
arquitetônicas. Por isso, a discussão sobre os projetos de refuncionalização
não podem se limitar ao valor econômico e ao valor de uso, para que seja
assegurado que este patrimônio permaneça como representante de parte da memória
histórica e cultural das cidades, quase sempre relegadas a um segundo plano. Afinal,
o melhor guardião do bem cultural é a conscientização da própria comunidade
pela apropriação simbólica que faz dessas arquiteturas. Os novos usos
pressupõem uma mudança de significado da obra, mas ela não perde sua marca de referência
ao passado. Conforme registrado no artigo, é necessário “(...) olhar as
relações antropológicas de apropriação destes bens no espaço e no tempo, para
identificar seus valores” (VILLAC, apud Choay, 2006). Ou seja, reconhecer as
relações afetivas da população com seus bens é essencial para que a cidade,
mais do preservar edifícios, possa manter seus símbolos para que as pessoas
possam reconhecer neles, a sua identidade. Tempo e espaço são âncoras que
compõe a memória. Quanto mais o tempo passa, mais sentido e mais ligações
afetivas são evidenciadas em relação à memória da Eberle. O espaço já não se
mostra tão grandioso quanto no olhar de criança, mas se torna cada vez mais
magnífico, diante da importância que se reveste para a memória da cidade. Certamente
os prédios da Eberle se constituem num dos grandes ícones da identidade ligada
ao trabalho, que é uma marca do povo caxiense, num primeiro momento dos
imigrantes italianos e hoje, dos muitos migrantes que aqui chegam para vencer
nesta terra.
Infelizmente o projeto de refuncionalização não foi
implantado na íntegra e as notícias de venda da edificação e seu futuro uso preocupam,
mas se percebe uma mobilização em torno dessa memória e do seu registro, agora
não só material como também imaterial. Nos trabalhos de preservação há que se
ter persistência, pois os resultados são colhidos há longo prazo, mas eles
chegam e são gratificantes, como o que vejo nos textos desse blog, concebido
pelos diretores e alunos da Pós-graduação em Bens Culturais e também em outras
mobilizações pelo patrimônio caxiense nas redes sociais.
É compensador perceber, como professora visitante deste
curso, que os alunos transcendem a dimensão tangível dos bens culturais, tão
cara aos arquitetos, para chegar a algo que esses profissionais não podem
deixar de considerar nas intervenções: o intangível, aquilo que dá sentido às
coisas, à arquitetura e à própria vida. Afinal, como já pregava Aristóteles:
“As cidades deveriam ser construídas para proteger seus habitantes e ao mesmo
tempo fazê-los felizes.” Certamente o olhar desta arquiteta e professora não
seria o mesmo se não conservasse na lembrança, as relações de afeto com os
lugares e edifícios de sua cidade, a exemplo das vitrines da Eberle.
*Professora do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e professora visitante do curso de
Pós-Graduação em Bens Culturais da SAPIENS/FAI.
[1] COSTA, Ana Elísia da; BUCHEBUAN, Terezinha. Evolução
tipológica da Metalúrgica Eberle: subsídios para projeto de refuncionalização. In: V Coloquio
Latinoamericano e Internacional sobre Rescate Y Preservación del Patrimonio
Industrial. Buenos Aires, 18 a 20 de setembro de 2007. Buenos Aires: Cedodal,
2007. ISBN: 978-987-1033-24-9. [Mesa I - Intervenciones De Conservación,
Recuperación y Refuncionalización del Patrimonio Industrial, texto 044].
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