sexta-feira, 1 de março de 2013

As vitrines da Eberle


Terezinha Buchebuan*

Quando escuto a palavra Eberle, a primeira imagem que me vem à mente é a das antigas vitrines. São memórias de infância. Sim, sou do tempo em que as vitrines da Eberle eram atração no centro de Caxias! O que me encantava? Certamente a diversidade, era um universo de informações e produtos para quem estava começando a descobrir o mundo. Lembro das incursões, em família, pelo centro da cidade: colocar a melhor roupa, ir para a missa na Catedral, brincar e correr com meus irmãos pela praça, enquanto meus pais sentados nos cuidavam. Próximo da hora de ir embora, comer pipocas, dois saquinhos para dividir em três crianças, atos e lições simples que nos uniram e nos ensinaram grandes valores.
No caminho para pegar o transporte coletivo, antigo Expresso Caxiense – o “transporte carinhoso”, tínhamos que passar em frente às vitrines da Eberle. Era um mundo à parte, quase incompreensível e inatingível para mim: os motores muito complicados; os artigos sacros que evocavam respeito; os artigos de montaria e as facas com lindos desenhos de cabeças de cavalo; os talheres que brilhavam tanto e eram tão chiques, expostos em caixas de madeira com veludo vermelho; os botões que víamos em nossas roupas e podíamos ler a marca Eberle por trás (pelo menos uma coisa da empresa a gente tinha); e o prédio, esse sim, aos olhos da criança se mostrava grandioso. Não bastasse isso, as vitrines eram concebidas com zelo e não se resumiam a um amontoado de produtos. A sequência, que se apresentava quase como quadros conforme se caminhava pelas calçadas com desenhos de engrenagem, iam dos motores aos artigos de prata como num ápice.
Muitos anos mais tarde, depois de ter me tornado arquiteta, tive o prazer de conhecer a Eberle, desta vez por dentro. A prof. Ana Elísia da Costa e eu, integrantes da equipe da arq. Sandra Favaro Barella, fomos incumbidas de estudar a evolução cronológica e tipológica das edificações com vistas a subsidiar o projeto de refuncionalização para implantação de uma instituição de ensino. Sim, foi um momento lindo. Inclusive vimos a réplica da primeira edificação bem de pertinho e revelo: ela é muito pequena! No entanto, o estado de degradação das edificações trouxe apreensões: as coberturas com muitas infiltrações, as madeiras apodrecendo, os ricos escritórios destruídos, enfim, uma lástima.
O estudo acabou resultando num artigo[1] que destacou, além da evolução das edificações ao longo do tempo, a importância que elas tiveram como vanguarda, transformando-se em referência arquitetônica e traduzindo as aspirações de modernidade da empresa e da cidade.
Na conclusão deste estudo foi registrado o abandono das estruturas industriais nos centros urbanos, destacando-se que as cidades não comportam o ônus da falta de uso desses espaços, mas não podem prescindir de seu valor patrimonial, que estão além de suas características arquitetônicas. Por isso, a discussão sobre os projetos de refuncionalização não podem se limitar ao valor econômico e ao valor de uso, para que seja assegurado que este patrimônio permaneça como representante de parte da memória histórica e cultural das cidades, quase sempre relegadas a um segundo plano. Afinal, o melhor guardião do bem cultural é a conscientização da própria comunidade pela apropriação simbólica que faz dessas arquiteturas. Os novos usos pressupõem uma mudança de significado da obra, mas ela não perde sua marca de referência ao passado. Conforme registrado no artigo, é necessário “(...) olhar as relações antropológicas de apropriação destes bens no espaço e no tempo, para identificar seus valores” (VILLAC, apud Choay, 2006). Ou seja, reconhecer as relações afetivas da população com seus bens é essencial para que a cidade, mais do preservar edifícios, possa manter seus símbolos para que as pessoas possam reconhecer neles, a sua identidade. Tempo e espaço são âncoras que compõe a memória. Quanto mais o tempo passa, mais sentido e mais ligações afetivas são evidenciadas em relação à memória da Eberle. O espaço já não se mostra tão grandioso quanto no olhar de criança, mas se torna cada vez mais magnífico, diante da importância que se reveste para a memória da cidade. Certamente os prédios da Eberle se constituem num dos grandes ícones da identidade ligada ao trabalho, que é uma marca do povo caxiense, num primeiro momento dos imigrantes italianos e hoje, dos muitos migrantes que aqui chegam para vencer nesta terra.
Infelizmente o projeto de refuncionalização não foi implantado na íntegra e as notícias de venda da edificação e seu futuro uso preocupam, mas se percebe uma mobilização em torno dessa memória e do seu registro, agora não só material como também imaterial. Nos trabalhos de preservação há que se ter persistência, pois os resultados são colhidos há longo prazo, mas eles chegam e são gratificantes, como o que vejo nos textos desse blog, concebido pelos diretores e alunos da Pós-graduação em Bens Culturais e também em outras mobilizações pelo patrimônio caxiense nas redes sociais.
É compensador perceber, como professora visitante deste curso, que os alunos transcendem a dimensão tangível dos bens culturais, tão cara aos arquitetos, para chegar a algo que esses profissionais não podem deixar de considerar nas intervenções: o intangível, aquilo que dá sentido às coisas, à arquitetura e à própria vida. Afinal, como já pregava Aristóteles: “As cidades deveriam ser construídas para proteger seus habitantes e ao mesmo tempo fazê-los felizes.” Certamente o olhar desta arquiteta e professora não seria o mesmo se não conservasse na lembrança, as relações de afeto com os lugares e edifícios de sua cidade, a exemplo das vitrines da Eberle.
*Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e professora visitante do curso de Pós-Graduação em Bens Culturais da SAPIENS/FAI.



[1] COSTA, Ana Elísia da; BUCHEBUAN, Terezinha. Evolução tipológica da Metalúrgica Eberle: subsídios para projeto de refuncionalização. In: V Coloquio Latinoamericano e Internacional sobre Rescate Y Preservación del Patrimonio Industrial. Buenos Aires, 18 a 20 de setembro de 2007. Buenos Aires: Cedodal, 2007. ISBN: 978-987-1033-24-9. [Mesa I - Intervenciones De Conservación, Recuperación y Refuncionalización del Patrimonio Industrial, texto 044].

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